PRECISAMOS DE NOVAS FORMAS DE EXPRESSÃO por David Herman

“Precisamos de novas formas de expressão. Precisamos de formas novas...  Não se deve representar a vida como ela é nem como vai ser, e sim como ela aparece em nossos sonhos.”
Treplev/Meyerhold - A Gaivota (1898)
 
“Eu gostaria de poder ficar no seu lugar, ao menos por uma hora, para descobrir em que você costuma pensar, do que você é feita.”
Trigorine/Stanislavski - A Gaivota (1898)
A Gaivota
É 1898 e o principiante Teatro de Arte de Moscou monta A Gaivota, de Anton Pavlovich Tchekhov, até então conhecido por seus contos. O sucesso lança a companhia e inicia novo capítulo na história de teatro.
Entre as personagens, dois escritores: Treplev, o iniciante, e Trigorine, o autor conceituado de romances populares. Nestas suas frases acima podemos reconhecer dois modos de olhar a arte do teatro. Entendemos a ansiedade do jovem Treplev de experimentar tudo que é inovador e fazer experiências na linguagem para estender as fronteiras da expressão teatral.  Trigorine, de outra forma, quer adentrar o ser humano e sondar profundamente a experiência humana.
É frequentemente notada a tremenda coincidência: os dois atores que encarnaram estas personagens eram dois diretores entre os mais influentes do início do século.  Foi o jovem Vsevolod Meyerhold que, com 24 anos, bradou os manifestos do jovem Treplev do palco e Constantin Stanislavski, diretor da peça, que atuou no papel do autor famoso, Trigorine.
Tremenda coincidência porque estas frases faladas em cena podiam muito bem servir de lemas para os próprios intérpretes.
Stanislavski, depois de uma carreira como diretor de sucesso internacional, permanece mais conhecido hoje como criador do seu famoso método para o ator que valoriza a experiência da personagem vivenciada pelo ator. Já Meyerhold, o grande inovador, foi o precursor de tudo que é de vanguarda no teatro até hoje. 
Mesmo quando estudava no Teatro de Arte, Meyerhold era consciente das limitações de uma educação tradicional para o ator. Seus cadernos deste período revelam uma leitura das mais abrangentes contendo teoria política, filosofia, estética, história da arte, psicologia e marxismo.
Depois de seguir Stanislavski por apenas quatro anos, Meyerhold cortou relações com o mestre e deixou o Teatro de Arte na busca de um teatro não convencional.
Em busca do teatro não-realista
O teatro na Rússia na primeira década do século 20 foi fortemente influenciado pelo movimento internacional do Simbolismo com ênfase na estética e misticismo junto ao preconceito contra o realismo. Mesmo Stanislavski montou peças no estilo Simbolista neste período, mas foi o trabalho de Meyerhold, em São Petersburgo, que se apegou às ideias da vanguarda e as colocou na prática, assim se tornando o reconhecido proeminente diretor do novo estilo anti-realista. Sua influência sobre jovens atores e diretores superou a de Stanislavski neste período.
O teatro de Meyerhold precisava de um novo tipo de ator cujo instrumento físico fosse capaz de atender às exigências de formas expressivas sem perder a organicidade.
Ele percebeu que mesmo o ator capaz de vivenciar o papel poderia sofrer de ‘paralisia’ cênica se o corpo não fosse altamente treinado e que o corpo paralisado poderia travar todo o processo orgânico. Para Meyerhold, movimento, gesto e fala deveriam ser imbuídos com um senso de ritmo e forma. Para isso ele desenvolveu um sistema de treinamento chamado ‘biomecânica’ no currículo da sua escola onde os atores aprendizes também tinham treinamento em acrobacia, boxe, ginástica, dicção, canto, dança e música. Enquanto isso, suas experiências teatrais foram buscando um vocabulário físico que começava onde o alcance da palavra acabava.
Em 12 de junho de 1922, a primeira demonstração dos atores treinados em biomecânica aconteceu com a apresentação d’O Corno Magnífico. Contrastando-se de forma nítida com o sistema de treinamento do Teatro de Arte de Stanislavski, a biomecânica esforçava-se em criar o ator completo, baseado num entendimento científico do corpo humano, favorecendo movimento sobre emoção.  Esta consciência corporal no palco permitiu que o ator possuísse autocontrole, equilíbrio, coordenação e consciência espacial. A abordagem revolucionária preparou seus atores para um teatro verdadeiramente novo.
Nesta montagem, o pintor de cena foi trocado pelo engenheiro e o construtor.  Figurinistas foram trocados por atores em uniformes, macacões. Meyerhold fugiu dos apetrechos do realismo ilusionista e expôs os tijolos dos fundos do palco revelando o esqueleto dos bastidores com toda a sua maquinaria. 
Seus atores se revelaram como corpos dinâmicos se equilibrando pelo cenário. Os atores dominaram a máquina do cenário como acrobatas, balançando de uma plataforma para outra, deslizando escorrega abaixo, voando escadaria para cima e executando manobras ousadas e perigosas num cenário sempre capaz de se deslocar e se transformar. Meyerhold tinha sintetizado atuação, teatro e arquitetura numa linguagem tão perigosa e ousada quanto o seu cenário.
Em busca de um método para o ator
Durante o mesmo período, Stanislavski estava desenvolvendo seu método para o ator.  Como a personagem Trigorine, parece que Stanislavski queria mergulhar no papel para entender como ele funcionava no seu interior. Por muitos anos ele procurou a desejada “vivência cênica” através de uma abordagem psicológica. Na Rússia, este momento é conhecido como seu ‘período psicológico’ e esta visão está amplamente divulgada até hoje no seu ‘best-seller’ A Preparação do Ator
Na mitologia popular, as figuras de Stanislavski e Meyerhold parecem oferecer alternativas teatrais quase opostas, e é verdade que durante suas carreiras paralelas a polêmica de Meyerhold, o rebelde, salientou este aspecto.  Na dedicatória de um livro, ele escreveu para Stanislavski: “Neste livro, a você dedicado, você encontrará uma crítica desfavorável à escola da qual é o fundador.  Eu enfatizei intencionalmente os aspectos negativos da escola.  Eu precisava fazer isso. Talvez eu possa escrever um volume complementar no qual possa esclarecer os aspectos positivos da sua escola. Você realizou uma tarefa enorme e necessária. Mas isto há muito tempo passou para a história.”
Até hoje, muitas pessoas associam o trabalho de Stanislavski com o teatro naturalista ignorando o fato que ele nunca negligenciou a força da forma externa.  É necessário apenas olhar as fotos das suas memoráveis atuações para perceber a grande variedade de caracterizações com que ele imbuiu as personagens. E Meyerhold nunca renunciou a importância das lições de Stanislavski sobre o trabalho orgânico do ator.  Como Stanislavski, ele sabia que, se percebemos uma brecha entre a psique e o corpo no trabalho de um a ator, se percebemos o controle de uma parte sobre o outro, somos, como espectadores, distraídos do essencial processo orgânico da atuação.
Stanislavski esteve sempre preocupado em suscitar a espontânea e viva criatividade do ator, mas estava constantemente reexaminando suas próprias ideias  Ele continuou a rever suas teorias até o fim da sua vida. Quando A Preparação do Ator foi publicado, já estava ultrapassado por novas experiências e ideias.
Nos anos 30, Stanislavski faz mudanças fundamentais no método de trabalho e reviu seu ensino em vários aspectos. Calcado na lei da união orgânica com o físico no homem, ele propôs abordar a criação não do ponto de vista psicológico, não segundo a experiência interior, mas a partir da lógica das ações físicas. Nesta nova busca, ele estava estimulado pelas experiências de seu colaborador Evgeny Vakhtangov, que, em 1922, montou dentro do teatro de Arte de Moscou, A Princesa Turandot, de Gozzi (montagem em que minha mestra, Sonia Moore, participou como jovem atriz). A Princesa Turandot foi um estrondoso sucesso. Altamente teatral e fugindo do realismo associado com o Teatro de Arte, a peça brincou com as possibilidades da commedia dell’arte criando formas novas para o texto velho. Os atores não sacrificaram conteúdo pela forma, nem forma pelo conteúdo. Vivos nos seus papéis, eles recriaram o delirante mundo de Gozzi da maneira mais teatral. Stanislavski elogiou: “Seu êxito é brilhante. Nos vinte e três anos do Teatro de Arte, havia poucos triunfos como este.   Você conseguiu o que muitos teatros têm procurado, em vão, por muito tempo.”
Conteúdo e forma
Stanislavski, embora tenha valorizado a vida humana refletida pela experiência humana no palco, nunca desvalorizou a forma e dentro da estética do seu teatro sempre procurou a mais contundente expressividade. Embora Meyerhold tenha esgarçado as possibilidades estéticas aos seus limites, ele nunca deixou de exigir o mais completo envolvimento de seus atores na vivência das suas personagens.  Colocando Stanislavski e Meyerhold em pólos opostos, ignoramos que o verdadeiro teatro transita numa mão dupla entre estes pólos numa velocidade relampejante. O bom teatro ao mesmo tempo em que poetiza o real também concretiza o abstrato.
A arte que tende pela linguagem, que depende do efeito teatral ao custo do conteúdo, que preza a estética acima da humanidade foi considerada por Stanislavski como uma arte bonita, mas não profunda, uma arte mais eficaz que poderosa, uma arte onde a forma é mais interessante que seu conteúdo, uma arte que encanta mais os ouvidos e os olhos do que a alma, e que, portanto, provoca mais apreciação do que admiração.  Foi Vakhtangov quem questionou: “não seria possível criar uma arte bela e profunda, eficaz e poderosa ao mesmo tempo? Uma arte que teria um conteúdo profundo e uma forma expressiva; que não afetaria somente aos olhos e aos ouvidos, mas também à alma; que provocaria, em resumo, apreciação e admiração?”
O teatro contemporâneo, nas suas melhores manifestações, continua buscando o encontro entre a mais profunda verdade humana e uma forma expressiva e forçosa; a união dos caminhos indicados pelo Stanislavski e Meyerhold; a síntese do real e o poético e o encontro do expressado com o inexprimível.
Post Scriptum
As forças formadoras dos movimentos artísticos na Rússia durante as respectivas carreiras de Stanislavski e Meyerhold não foram primeiramente estéticas, mas, de fato, políticas. Os governos do Czar Nicolau II e, depois da Revolução de Outubro 1917, os governos soviéticos, exerciam tamanha influência sobre as artes através de decretos, vigilância, censura e repressões que é impossível uma completa avaliação da arte de Stanislavski ou Meyerhold sem uma profunda análise da vida política da época. 
Da mesma forma que Nina Zaratchnaya rejeitou Treplev/Meyerhold em A Gaivota em favor do bem-sucedido Trigorine/Stanislavski, a Revolução de Outubro escolheu Stanislavski como seu representante oficial e o método de Stanislavski se tornou ortodoxia. Como Treplev, Meyerhold foi rejeitado pelo regime.  À luz dos subsequentes eventos, a escalação de elenco daquela famosa estreia de 1898 parece um ato de pressentimento.
Stanislavski e Meyerhold começaram a trabalhar juntos novamente em 1936 quando os dois já estavam velhos. Eles continuaram a se encontrar até a morte de Stanislavski, em 1938. 
Em dezembro de 1937, o jornal oficial do partido comunista,Pravda (A Verdade) publicou um artigo escrito pelo presidente das Artes da União Soviética em que o teatro de Meyerhold foi duramente criticado. Seu teatro foi chamado de ‘um teatro alienado’. No período das represálias de Stalin, isso representou uma grave acusação.  Em janeiro, o Teatro do Estado de Meyerhold foi fechado.
Meyerhold completou a direção de uma opera, Rigoletto, que Stanislavski estava trabalhando no momento de sua morte e, a pedido do mestre, foi escolhido diretor do Stanislavski Teatro de Ópera.
O fato de Stanislavski ter sido o único a oferecer trabalho para Meyerhold quando ele havia caído na desgraça de Stalin e sua reputação e vida estavam em risco pelas políticas soviéticas pode parecer um surpreendente desdobramento da relação entre os dois. Todavia, mesmo com a ajuda de Stanislavski, Meyerhold foi preso em 1939 e levado para um campo de trabalho forçado onde foi executado em 2 de fevereiro de 1940. 
As pessoas mencionadas neste artigo:
Anton Tchekhov (1860-1904)
Até os 1890s Tchekhov era conhecido como um escritor de contos e pequenos esquetes de vaudeville. A partir da sua peça A Gaivota (escrita em 1885 e montada por Stanislavski em 1898) entrou num período de criatividade que resultou em mais três obras-primas: Tio Vanya (1896), As Três Irmãs (1901) e O Cerejal (1904), todos retratos contundentes da sociedade russa que asseguraram o seu renome.
Evgeny Vakhtangov (1883-1922)
Diretor do Terceiro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou.  Na Rússia, sua contribuição para o teatro é considerada tão importante quanto as de Stanislavski e Meyerhold.
Josef Stalin (1878-1953)
Líder soberano da União Soviética de 1922 até sua morte em 1953.  Embora os anos 20 sejam reconhecidos como momento de grande criatividade no teatro russo, era uma época em que o governo começou a tomar conta das artes e todos os aspectos da vida soviética.  Em 1928, sob as ordens de Stalin, toda experimentação nas artes foi proibida.  O teatro assim como a indústria e a agricultura fora dirigido pelas políticas do governo. Foi uma época de processos exemplares e execuções de artistas.  
Fonte: Cal Digital

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